segunda-feira, 4 de julho de 2016

JAMIL CURY: DIREITO Á EDUCAÇÃO: DIREITO Á IGUALDADE, DIREITO Á DIFERENÇA

Hoje, no mundo, não há país que em seus estatutos oficiais não garantam o direito á educação escolar para sua população, todavia, a realização desse direito entra em choque com as condições sociais de funcionamento das sociedades, e muitos governos se declaram incapazes de expandir a oferta de escolas, e por isso a lei não é reconhecida como mecanismo de realização dos direitos sociais, mas se torna importante por possuir uma dimensão de luta.

A instrução se torna dever público e oferecido gratuitamente com a função de potencializar a razão individual, afim que o indivíduo pudesse se autogovernar e participar da sociedade como pessoa livre. “Ao oferecer a educação escolar primária gratuita, o próprio estado liberal assegura uma condição universal para o próprio usufruto dos direitos civis.” (p 249).

Dessa forma, a educação primária gratuita seria vista como forma de diminuir as desigualdades sociais, levando a população lentamente para um mesmo ponto de partida. Também é identificada como objeto de coerção estatal, já que o ignorante não tem capacidade de escolher livremente

A educação das crianças está diretamente relacionada com a cidadania, e, quando o Estado garante que todas as crianças serão educadas, este tem em mente, sem sombra de dúvida, as exigências e a natureza da cidadania. (...) Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança frequentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado (Thomas Marshall, 1967, p73 cit em p 249/250)

Seguindo esse raciocínio, tornou-se legítimo a obrigatoriedade de se frequentar a escola, justificando que a diminuição dessa liberdade colocaria todos os indivíduos em um mesmo nível, e para estimular a população á buscar essa educação, muitos países fizeram dela condição para o exercício dos direitos políticos, entre eles o voto. Para Marshall “o desenvolvimento da educação primária pública durante o séc XIX constitui o primeiro passo decisivo em prol do restabelecimento dos direitos sociais da cidadania no sec XX” (p 74 cit em p 252).


A educação passa a ser também bandeira de luta de vários partidos e grupos radicais da classe trabalhadora nos séculos XIX e XX, que lutavam não só pela escola primária gratuita e obrigatória, mas também sua extensão a níveis mais elevados.

" Assim, seja por razões políticas, seja por razões ligadas ao indivíduo, a educação era vista como um canal de acesso aos bens sociais e á luta política e, como tal, um caminho também de emancipação do indivíduo diante da ignorância. Dado este leque de campos atingidos pela educação, ela foi considerada, segundo o ponto de vista dos diferentes grupos sociais- ora como síntese dos três direitos assinalados- os civis, os políticos e os sociais ora como fazendo parte de cada qual dos três." (p 254).

AS lutas por uma escola obrigatória, gratuita, laica e por governos civis dependentes do contrato social foram cruciais para que a escola pública para todos se constituísse em apoio da construção da nacionalidade e do acesso ao sistema eleitoral.

Hoje, a discussão do direito á educação escolar trata-se do direito á diferença, discutindo questões de gênero, credo, etnia, entre outras. Aqui se encontram dois pontos: é preciso defender a igualdade ( princípio da não discriminação) como princípio da cidadania, da modernidade e do republicanismo. Mas a luta por redução das desigualdades não é fácil, pois a heterogeneidade é perceptível, o que não ocorre com a igualdade.

O empírico ou pensamento único é necessário para uma realidade do gênero humano, que estabelece uma igualdade básica, necessária para que haja respeito pelo humano, base de todas as teses de democracia e cidadania.
A defesa da diferença não tem sucesso se não considera a igualdade, pois essa se trata do homem como pessoa humana, onde o princípio de igualdade se aplica sem discriminação ou distinção. Todavia se trata também de um homem concreto, e sua situação deve ser considerada ao aplicar a norma universal.

Um tratamento diferenciado só se justifica perante uma situação objetiva e racional e cuja aplicação considere o contexto mais amplo.” ( p 256) Assim, os estados democráticos deixam claro as discriminações proibidas: origem, raça, sexo, religião, cor, etc, ao mesmo tempo que se considera inviável pensar em uma igualdade absoluta.

Para os países colonizados, a educação não se estabeleceu dessa forma, por não contarem com a industrialização desde cedo e a constituição de uma classe operária forte e organizada. Para as classes dirigentes a educação não se tornou uma necessidade socialmente significativa, e não houve um outro ator social que cobrasse responsabilidades sociais, sendo que as classes dirigentes se dedicaram mais a seus interesses exclusivos. A situação se complica ainda mais em países que houve escravidão, onde o outro era visto como inferior, e a elite que se considerava superior pouco fez por uma educação gratuita para todos. A leitura e interpretação de livros eram reservadas á pessoas autorizadas pela igreja católica, e por isso maior relevância da transmissão oral, po meio das catequeses. Tal fato dificulta a luta pelo direito á educação, e esses países encontrarão grandes dificuldades para inscrever esse direito em suas leis, e mesmo quando este for garantido nas mesmas, ainda haverá um grande caminho até seu efetivo funcionamento.

Isso explica o enorme número de pessoas que sequer possui educação primária, sendo ainda grande o número de pessoas que possui poucos anos de escolaridade. A pirâmide educacional acompanha muito de perto a pirâmide da distribuição da renda e da riqueza." (p 258)

No Brasil, em 1967 o ensino fundamental passa de quatro para oito anos obrigatórios, e em 1988 é reconhecido como direito público subjetivo, o que garante que qualquer cidadão que não tenha tido acesso á educação possa reclamar na justiça seu direito, a qualquer idade.

O acesso à educação é também um meio de abertura que dá ao indivíduo uma chave de autoconstrução e de se reconhecer como capaz de opções. O direito à educação, nesta medida, é uma oportunidade de crescimento cidadão, um caminho de opções diferenciadas e uma chave de crescente estima de si.” (p 260)

O direito à educação decorre de dimensões estruturais coexistentes na própria consistência do ser humano.” (p 261)

A racionalidade é condição do reconhecimento de sim, do outro e da sociedade, e o desenvolvimento da pessoa depende do efetivo desenvolvimento da capacidade cognitiva, daí a necessidade da educação para todos.

Ao mesmo tempo a relação que se estabelece entre professor e aluno é de tal natureza que os conteúdos e os valores, ao serem apropriados, não se privatizam. Quanto mais processos se dão, mais se multiplicam, mais se expandem e se socializam. A educação, com isto, sinaliza a possibilidade de uma sociedade mais igual e humana.” ( p 262)


Referência:
CURY, Carlos Roberto Jamil.Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cad. Pesqui. [online]. 2002, n.116, pp.245-262. ISSN 0100-1574.  http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000200010. 

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