quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

CRIANÇAS NATIVAS: Relações entre infância, educação e escolarização PARTE I

I- ESTUDO SOBRE CULTURA NATIVA E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA, EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO
Na cultura nativa dos índios Kadiwéu¹, estudados pela etnógrafa Lisiane Koller, as crianças são um indicador- chave na vida social, os mais velhos procuram agradá-las contando histórias, ensinando o idioma e falando do orgulho de pertencer ao grupo. Essas não são chamadas para as tarefas domésticas, ficam ocupando seu tempo em  brincadeiras nas proximidades da casa. 
Os adultos param para as ouvir – histórias, comentários ou reclamações - sorrindo de suas brincadeiras, dispensando-as atenção, pois elas são muito importantes e nunca são contrariadas ¨não ensinam as crianças a trabalhar [...] só brincadeira só diversão¨ (p. 28).
Na cultura kadiwéu as crianças demonstram curiosidade e conhecimento, detalhando sobre várias coisas como o mundo dos vegetais e animais. Nesta aldeia Bodoquena as crianças são tratadas com mimo, não se ver surras ou humilhações seus comportamentos são tranquilos e a relação da família é sempre com muitas conversas.
Há muitos mitos envolvendo o medo de roubarem as crianças, historinhas de como as cores dos animais surgiram, o arco-íris e o menino animal.
 A diversidade de rituais é enorme e estão associados a mudanças no corpo dos jovens, como a primeira menstruação na menina e a mudança de voz nos meninos, rituais funerários e outros.
Para essa cultura as crianças estabelecem relação entre vivos e mortos, humanos e animais e tem a capacidade criativa e de encantamento. A autora aborda essa educação como ¨fundamentalmente dinâmico (p. 41).
¨Elas perpassam tanto o mundo visível dos parentes quanto os mundos invisíveis dos espíritos e animais que  lembremos, compartilham uma ¨humanidade comum¨ original no pensamento ameríndio¨  VIVEIROS DE CASTRO ( 1996 citado por LECZNIESKI p. 44).


¹Vivem no Pantanal Mato Grosso do Sul no Brasil fronteira com o Paraguai. Falam a língua raíz guaicuru.
Essas crianças, para alguns autores, são um ser incompleto e em construção, ao contrário,para Koller, são dotadas de um caráter relacional e ¨portanto social¨ (p. 46)(...) Equiparam aos xamãs de ¨alto rendimento simbólico no pensamento antropológico¨ (p. 48).

Já Camila Guedes Codonho apresenta um trabalho realizado com os   índios Galibi-Marworno, moradores de duas aldeias: kumarumã, as margens do rio Uaçá, Tukai, as margens da BR 156, esses situa-se ao norte do estado do Amapá região que faz fronteira com a Guiana Francesa.
Para essa cultura a criança é formada na barriga da mãe da mistura do sangue desta com a do pai, é um espírito forte e puro.
 Ao chegar a hora do nascimento a parteira e uma equipe de aprendizes chega a casa afim de cuidar dos preparativos para o nascimento. Se o parto estiver complicado há vários rituais, chamado de potás, onde é proferido o potá – ritual - que se relacione com o que está complicado.
Ao nascer o cordão umbilical é cortado e espera-se que a placenta nasça também, ela é chamada de ¨a última criança¨ e enterrada próxima a casa.
Entre os pais são interditadas as relações sexuais, no período de até sessenta dias o pai não poderá executar trabalhos pesados, pois segundo essa cultura e a de muitas outras tribos isso afeta o bebê.  
Sobre o nome dos bebês, esses fazem parte de códigos, meios de significações. O bebê recebe o nome definitivo em algumas semanas ou meses e alguns nomes são escolhidos por alguém fora da tribo como professores, indigenistas e outros, podem vir também de nomes de mortos, inimigos e animais. Diferente da tribo Guarani, pesquisada por Clarissa Rocha, onde os nomes carregam características da personalidade e de suas predisposições para rituais. "Os nomes Guarani demonstram relações entre o parentesco com seres humanos e seres de outro mundo" (p.121)
A educação dos Galibi-Marwornos relata a respeito das histórias que contam sobre as crianças que são filhos de bichos, isso para justificar comportamentos atípicos de uma criança, doenças e mortes. ¨Conta-se que são seis bichos que engravidam as mulheres¨ (p. 63). Cobra, jacaré e lagarto são alguns desses bichos que depois vem buscar seus filhos e esses, se não morrem no parto podem se tornar xamãs. Se essa criança é fraca, chora demais ou tem deformidade física há propensão de se tornar pajé.
No entanto, ao se falar do lugar da criança, essa educação a valoriza e protege, pois é a alegria em casa, faz barulho, os pais não podem maltratar, se acontecer isso deverá prestar serviço social na comunidade indígena, porém na maioria não acontece. Os pais também podem dar um filho para ser criado com os avós, isso é honra para eles e alegria em casa.
De acordo com as faixas etárias das crianças, estas desenvolvem atividades obrigatórias: crianças com 7 a 12 anos praticam atividades domésticas, as meninas lavam as louças e os meninos ajudam a cuidar dos irmãos mais novos. A partir dos 13 anos se tornam aptos para casarem e as responsabilidades aumentam.
Para Camila Guedes, as crianças são produtoras de conhecimentos e responsáveis em transmitir tradições culturais, para ela as crianças transmitem seus conhecimentos umas ás outras ( horizontal) no cotidiano, indo além de que os saberes são transmitidos dos mais velhos aos mais novos ( vertical).
¨os saberes transmitidos [...] brincadeiras, obrigações diárias, cosmologias, mitologias, etnoconhecimentos até percepções das regras matrimoniais [...] evidenciou o protagonismo infantil e a importância das crianças na transmissão das práticas culturais¨(p. 68).

Assim, as crianças apresentam um papel importante para a tribo. Seu valor é bastante notável até mesmo nos rituais de velório, onde participam ativamente levando informações para os adultos sobre o morto. Acompanham os pais e os avós, demonstram a percepção e o respeito as regras sociais que regem o seu grupo, tendo em vista a capacidade que elas têm de apreender um ¨repertório comum de conhecimentos, compartilhados pela população como um todo¨ (p. 72).



 Já para os Maxakali, grupo indígena de Minas Gerais  estudados pela  pesquisadora Myrian Martins, as crianças, tidas como mediadoras, são essenciais para realização dos processos de transformação.
 A partir daí, a   reflexão sobre a categoria da criança e concepção de infância, construção da pessoa, cosmologia e aprendizagem para a sociedade Maxakali é construída.
O resguardo do sangue leva a um ritual para a mulher que está grávida e o seus parceiros. A não observância das regras deste implica danos somente ao próprio infrator e até a modificação do seu destino após a morte.
Todos os parceiros que tiveram relações sexuais com essa mulher serão considerados participantes da construção do corpo do bebê e também pais da criança.
Há um outro ritual chamado yãmiy –espírito dono do canto- ou o próprio ato da fala. Ele penetra pela boca da criança no seu nascimento e quando ela morre o yãmiy terá uma nova vida no mundo do além. Assim, o descontrole sobre o fluxo do sangue acelera no corpo o processo para a morte do yãmiy para a doença e a morte precocemente.
Segundo essa cultura todo conhecimento pertence ao mundo do espírito- yãmiy- assim, trazer os espíritos para cantar na ¨casa dos cantos¨ significa o início da vida adulta.
Os avós, tios, irmãos mais velhos e os pais são os que dão os seus yãmiy para seus filhos pois não precisam mais dele, nesses rituais
os seus  corpos, através das máscaras cerimoniais e das pinturas corporais específicas, se tornam os espíritos presentes na terra, que cantam e dançam para os humanos, atualizando assim a união entre os homens e os espíritos (p.83).

O conhecimento é incorporado as técnicas corporais e seus significados. Essa transmissão de conhecimento se dá a partir das crianças, essas são instruídas nos cantos e na performance  cerimonial por seus parentes próximos.
Tal experiência intelectual precisa ser vivida no próprio corpo e é essa que possui o poder de construir a pessoa e ¨torna-la um ser humano completo'(p. 84).
As crianças são os bens valiosos trocados entre os espíritos e os humanos. São portanto as almas das crianças mortas que trazem os cantos daqueles que partiram. Somente os meninos que passam por esse ritual, pois só os meninos podem ser xamãs e as idades são entre 5 e 8 anos. 
É os meninos que podem entrar na casa dos homens e dormir e comer dentro da casa acompanhados de seus pais. Longe da casa materna. É assim até próximo ao período de se casarem, então manterão uma roça própria e participarão da vida política da aldeia, porém as meninas, por permanecerem no universo doméstico, não se transformam.
É assim o movimento dos espíritos, o fluxo da fala e do canto quando apropriado promove a transmissão de conhecimento. O controle do fluxo do sangue produz o corpo da criança, porém o descontrole produz o apodrecimento, ou seja, a morte. O controle sobre o fluxo dos cantos transmite o conhecimento, porém o descontrole conduz a doença e a morte.
Na cultura Maxakali as crianças possuem o papel de mediadoras entre as pessoas e os grupos para amenizar os possíveis conflitos ou hostilidades.
Entremos então um pouco na aldeia de M’Biguaçu localizada no Km 190 da BR-101, próximo ao município de Biguaçu, Grande Florianópolis, sua população é de 110 indivíduos no ano de 2005 segundo o FUNAI, em sua maioria identificam-se como Guarani Chiripá, havendo a presença de pongué (mestiços). Quem nos traz informações sobre essa tribo é a etnógrafa Melissa Santana de Oliveira.
A autora aborda a educação dos Guarani, e começa por dizer sobre a importância do nome da criança.
Nessa tarefa muito difícil, é valorizada cada criança, pois, segundo Melissa, o seu nome se relaciona ao lugar  do céu que ela veio. A pessoa deve ver a criança e ir para a casa conversar com o grande Deus NHANDERU para saber o nome específico ou especial.
 Relata sobre a liderança dos M’Biguaçu, que está investindo no movimento de valorização da tradição e que esses movimentos são de suma importância, os três destacados são: 1- a criação de uma escola na aldeia em 1996 para uma educação escolar diferenciada para esses povos, escrita e leitura Guarani e que permitisse o conhecimento não índio. 2- a formação do coral – Nuvens Azuis- em 1998 com músicas e danças, questões místicas e religiosas. 3- a construção de uma casa de rezas- opy- fundamental para a vida do grupo.  
A vida das crianças pequenas é de muita liberdade, pois brincam em frente da escola e entram quando querem, fazem desenhos e comem a merenda junto com os irmãos maiores, na casa de rezas brincam e cantam ou tocam instrumentos quando querem e ao sentir cansaço dormem no colo da mãe.
A partir dos 6 ou 7 anos já começam a participar das tarefas do cotidiano da aldeia, ajudam os adolescentes em suas tarefas, atividades de artesanato e no preparo de alimentos, porém não deixam de brincar e já participam de rezas e no coral com danças e cantos.
Os rituais de passagem nos meninos é quando a voz começa ficar grave, eles são proibidos de diversos afazeres, entre eles tomar banho no rio e falar no mato durante um período de um ano. Ao final são abolidas as proibições.
 Nas meninas o ritual é na primeira menstruação, é reservado um lugar no canto da casa para ela e ali poderá aprender artesanatos, cortar seus cabelos e colocar um torno de pano na cabeça para evitar dor de cabeça.
Assim é iniciada para a vida adulta. A partir daí os afazeres para ambos aumentam, os meninos começam a ajudar buscar lenhas e as meninas nas tarefas doméstica e artesanatos. Essa época a autora relata que é marcada por ¨bailões [...] e alguns jovens passam a frequentar as escolas dos não índios¨ (p. 98).
Nos rituais de religiosidade muitas vezes as crianças que iniciam as rezas, falam algumas palavras e borrifam a fumaça do cachimbo. Esses são marcados por danças, cantos, toques com os instrumentos e sessões de curas, as meninas dançam e batem os pés no chão.
No que diz respeito a sessão de cura, o interesse parte da própria criança guarani, que aprende com seu pai. Após esse ritual as rezas são retomadas pelos adultos, adolescentes e crianças. As relações com o sagrado são sempre pessoais e o pequeno benzedor, como diz a autora, tem um enorme interesse em participar das sessões. Ele é autônomo, é a criança que escolhe seu caminho, as rezas diárias terminam perto das 21 horas.
O coral – Nuvens Azuis- ¨mantêm ensaios regulares e uma agenda lotada de apresentações¨ ( p.102) e os cantos, músicas e letras, são dados em rezas. Há algumas categorias de rezas na divisão do coral, e ao apresentar eles mostram essas categorias.
A escola que tem na aldeia contém uma sala de aula e uma turma multisseriada, as crianças entre 7 e 10 anos, estudam saberes indígenas como nomes e o valor curativos das plantas, projetos de plantações, desenhos e confeccionam objetos e saberes não indígenas em concordância com o líder Guarani,  como o português, fazendo assim as relações desses currículos com a matemática, geografia, biologia e História.
A educação Guarani é a relação entre ensino e aprendizagem num contexto de práticas favoráveis ao desenvolvimento educativo da criança, essas que são: ¨crianças religiosas, crianças cantoras e crianças estudantes¨ ( p. 112).

II- SEMELHANÇAS NA CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA E ESCOLARIZAÇÃO
A partir do estudo dessas três autoras, se observa uma semelhança grande entre as três concepções de infância: em todas as crianças pequenas são seres livres, que agem segundo suas vontades. A partir do ritual de passagem, são lhes apresentados as responsabilidades da vida adulta.
Os Guarani de  M’Biguaçu apresentam uma aceitação de educação escolar melhor, de forma que existe uma escola em sua tribo. Contudo, são respeitados os costumes locais, e as crianças não possuem horário fixo para ir a escola.
O objetivo da escola na tribo Guarani de  M’Biguaçu seria a valorização e preservação de sua cultura, sendo ensinados a língua nativa e costumes próprios. Mesmo com esse trabalho de valorização própriose vê oportunidades de trabalhar seus costumes com a educação escolar no modelo ocidental, sendo permitido, através da liberação pelo Chefe da tribo, ensinar o português e dialogar com outras disciplinas do saber, como a geografia, biologia, história, etc.
Suzana Cavalheiro de Jesus realizou um projeto educacional na tripo Mbyá-Guarani que vale a pena ressaltar.
Durante sua pesquisa etnográfica, observou-se o intereçe do Cacique em que suas crianças pudessem ser educadas sem sair do território de seu acampamento. Assim, uma vez por semana ela se deslocava até o acampamento e desenvolvia atividades com as crianças entre 3 e 6 anos.
A partir desta experiência, foi escrito o projeto Arandu: ensinar e aprender, que visava desenvolver atividades pedagógicas com as crianças desta tribo.
Entretanto, havia um embate entre o Cacique da Tribo  e a prefeitura local: para o Cacique, educação era importante, mas terra vinha primeiro, e por esse motivo, não permitia as crianças de irem as escolas até que resolvessem seu problema de localização. O acampamento da tribo se localizava em um local insalubre, impróprio para moradia.
Com isso observa-se que os Mbyá-Guarani não se opunham a educação, visto que permitiam a realização de atividades pedagógicas dentro do acampamento, mas se negavam a aceitar a escola como instituição, com suas normas e formas de funcionamento próprias.

JESUS, Suzana Cavalheiro de. Acampamentos indígenas no Sul do Brasil: os diversos olhares para a educação e a infância Mbyá-Guarani. 

Autores
Carolina Aparecida
Carlos Renato
Geusa Nascimento

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