Rita
Coelho, coordenadora geral de educação infantil da Secretaria de
Educação Básica do MEC, comenta sobre falta de clareza dos
sistemas de ensino com as orientações de seu trabalho e fala ainda
sobre as dificuldades da educação infantil no campo
A ampliação do acesso à
pré-escola e à creche, definido na meta 1 do Plano Nacional de
Educação (PNE) é um grande desafio que o país vai enfrentar nos
próximos anos. A dificuldade não está apenas no financiamento, mas
também na ausência de clareza dos sistemas de ensino sobre qual a
concepção e a forma de organização que orientarão seu trabalho,
sobretudo para os primeiros anos dessa etapa. É o que defende a
coordenadora geral de educação infantil da Secretaria de Educação
Básica (SEB) do MEC, Rita de Cássia de Freitas Coelho. Na
entrevista a seguir, concedida à editora Marina Almeida durante a II
Conferência Nacional de Educação (Conae), ela fala ainda sobre as
dificuldades de oferecer educação infantil no campo, da falta de
regulamentação do transporte coletivo para crianças pequenas e da
avaliação da etapa. Rita aborda ainda a importância de existir um
professor graduado para os alunos pequenos e a necessidade de
regulamentar o profissional conhecido como auxiliar ou cuidador que
também atua nesta etapa.
A
meta 1 do PNE é atender, no mínimo, 50% das crianças de 0 a 3
anos. Os gestores têm apontado esse como um dos grandes desafios
para os municípios. O problema é apenas de recursos?
A
meta de 50% de atendimento da população de 0 a 3 anos é um
objetivo do PNE anterior. Ela é uma meta que já estava posta há 12
anos e não foi cumprida. Considero que ela seja alta para o país,
mas agora é lei e temos de nos empenhar ao máximo para atingi-la.
Eu sintetizaria em três grandes dificuldades: uma delas é de
concepção. O sistema educacional nunca trabalhou com bebês. Ele
não tem práticas, não tem materiais, não tem rubricas, não tem
materiais de despesa para desenvolver um trabalho com esse sujeito
que é tão diferente. Há essa diversidade etária, em que o mais
diferente é o bebê, mais diferente que o deficiente, indígena, que
o negro, o quilombola. Segundo: há uma dificuldade objetiva de
organização. No diálogo que temos com prefeitos e secretários de
Educação, eles têm medo, até, de atender bebê. Eles não têm
aqueles protocolos que a Saúde tem. Como organizar um lactário,
como trocar fralda em um ambiente coletivo, institucional. O meu
exemplo de trocar as fraldas dos meus filhos, dos meus netos não
vale de nada, pois uma coisa é trocar a fralda de um bebê, outra é
de oito, dez. Há essa dificuldade de organização do espaço, da
proposta de atendimento, da formação do professor, da relação com
a família... A família tem características muito próprias de
organização nessa faixa etária: culpa, medo, cumplicidade. É tudo
muito desafiador para o sistema. E tudo isso recai no financiamento,
que não é uma dificuldade exclusiva da educação infantil, mas é
muito forte ali. A primeira vez que se redefiniu o valor do repasse
do Fundeb, ele era muito inferior. Mesmo que ele venha aumentando,
ainda é muito diferente do custo do atendimento desse bebê. O
financiamento é necessário, mas não é suficiente. Há municípios
que têm recursos, mas não atendem como deveriam.
Em
sua fala na mesa de educação infantil, a senhora disse que há
creches do Pró-infância que ficam fechadas por um ano. É uma
dificuldade de organização da escola?
Isso
acontece por vários motivos. Primeiro, por dificuldade de
organização. Às vezes é um município que nunca atendeu crianças
de 0 a 3 anos e não tem quadro de pessoal, por exemplo. Às vezes a
obra não atendeu às exigências do projeto original e não foi
aprovada pelo FNDE, então é preciso fazer algum ajuste. Algumas
dessas obras fechadas têm relação com questões políticas, trocas
de gestão municipal...
E
com relação à pré-escola, até 2016 o país deve universalizar o
acesso. Como tem sido essa evolução?
Essa
é uma questão mais tranquila e o próprio investimento do município
é maior nessa área. O problema é que, onde não estamos atendendo,
não é por dificuldades da educação infantil, mas da estrutura
desigual do país. Quem é que não está na pré-escola? É a
criança do campo, é o ribeirinho, é a criança de uma família
muito pobre, que às vezes não tem conhecimento do direito. São
famílias das periferias dos grandes centros, onde não conseguimos
construir por falta de terreno. Embora ele seja menor não quer dizer
que seja mais simples.
Para
priorizar as vagas na pré-escola, há redes reduzindo as de creches?
Acontece,
mas isso não tem um impacto nacional na frequência da educação
infantil. No censo escolar é possível ver que o atendimento em
creches vem aumentando sistematicamente, com bons percentuais. Não
há um retrocesso. O que ocorre é que, infelizmente, alguns gestores
não compreendem que a obrigação do gestor é idêntica em relação
à creche e à pré-escola, e o Supremo Tribunal Federal já se
manifestou sobre isso. Há essa interpretação equivocada, e
conveniente, de que a matrícula obrigatória torna a pré-escola
prioritária. Prioritário é o atendimento no que o município é
mais deficitário. Hoje o que os estudos mostram é que o maior
desafio é o atendimento de 0 a 3 anos.
E
quanto à qualidade dessa educação ofertada? Corremos o risco de
expandir sem qualidade?
Na
educação infantil, esse é o grande desafio. Para as dificuldades
de acesso, nós já encontramos um caminho. Será preciso tempo e
recursos, mas sabemos que a saída está na mudança da estrutura do
país, com a efetivação do regime de colaboração e o aumento dos
recursos para a educação. E já há uma proposta do governo federal
em andamento, que é o Próinfância. Já na qualidade, os desafios
ainda são muito grandes, mesmo porque ainda não temos muitos
consensos do que seria essa qualidade. Além disso, há aspectos da
qualidade que serão sempre relativos àquela comunidade, àquela
criança, família e escola determinada. O problema é que a escola
não pode ser toda relativa, há determinados aspectos que devem ser
assegurados.
E
com relação à educação infantil no campo?
Lançamos
junto com as Universidades Federais do Rio Grande do Sul, de Campina
Grande, de Minas Gerais e do Amazonas, e também a Universidade
Estadual de Sinop, um estudo sobre a oferta e demanda da educação
infantil no campo. É um desafio nacional. E, insisto, primeiro, de
concepção. Esse modelo de educação infantil urbano não atende a
todas as realidades do campo. Atende só a algumas, como as zonas
rurais próximas às cidades. Temos de estabelecer o que é rural e o
que é urbano. É preciso conceituar melhor o que é o campo e nessa
pesquisa há um esforço para isso. Em segundo lugar, temos de
construir outra possibilidade que não seja esse padrão de
atendimento de cinco dias por semana, por 4 ou 7 horas, mas que
também não represente uma precarização, com um programa de visita
domiciliar, com um profissional não habilitado, isso não é
educação infantil. É importante visitar as famílias, orientá-las,
ler para as crianças, todas essas questões podem se configurar como
programa, mas não são equivalentes ao dever do Estado com a
Educação Básica. Agora, que modelo é esse, nós também não
sabemos. O MEC está com uma enorme disposição para debater e
queremos construir isso com a realidade, com essas populações, não
só na mesa com especialistas. Para nós está claro: para algumas
realidades das escolas do campo, ficar quatro horas na escola
responde sim, mas para outras não, e vamos ter de pensar em outras
possibilidades. Outros países têm diversas formas de atender, um
semi-internato, uma ação conjunta com a família, uma ação
itinerante com alternância...
Ainda
não há uma legislação nacional sobre o transporte público de
crianças pequenas e essa questão começa a preocupar os gestores.
A
criança pequena ainda é muito invisível na nossa sociedade, que
acha que o que é bom para o adulto é bom para a criança pequena. O
mobiliário da educação infantil corresponde ao do ensino
fundamental reduzido em tamanho? Não. É preciso outro mobiliário,
que dê suporte, para que a criança aprenda a andar, possa se mover,
que tenha também um aspecto lúdico. Em nosso país isso ainda está
em concepção. Na questão do transporte a questão é ainda mais
grave, pois não existe uma legislação de transporte coletivo de
crianças pequenas, seja interestadual ou municipal. No âmbito do
transporte escolar isso se torna um grande desafio, pois não há um
adulto para cada criança, não faz sentido. O programa Caminho da
Escola não abarca a educação infantil por isso, pois não vamos
criar uma lei sobre transporte. E o município que faz o transporte
escolar o faz no âmbito da sua autonomia, com responsabilidade dele.
O MEC e o Ministério Público estão fazendo um esforço para
induzir a discussão dessa legislação com o Departamento Nacional
de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
Outra
questão importante é o quadro de recursos humanos. Obrigatoriamente
na educação infantil a criança precisa ter um professor, além do
cuidador?
A
educação infantil entrou para o sistema educacional brasileiro e o
profissional da educação é o professor. Claro que o perfil é
diferente se ele leciona no ensino superior ou na Educação Básica.
A criança tem o direito de ser atendida por um profissional
habilitado no magistério, que é o professor. Mas existe a
necessidade de outros profissionais atuarem na educação? Sim, não
há dúvida. Alguns desses profissionais, como especialistas, para
serem estes profissionais precisam ter sido antes professores.
Entretanto, outros profissionais têm uma identidade própria, como
merendeira, secretário de escola e o técnico de informática, não
há dúvida de que o professor não é o único profissional da
educação. Na educação infantil vem aparecendo essa figura do
auxiliar, do monitor, do recreacionista, que tem origem na
assistência social, onde bastava ter boa vontade, ser carinhoso. E
na educação há a antiga concepção de que se é para a criança,
não há a necessidade do diploma. É uma concepção atrasada, que
alinhada a esses outros fatores, da dificuldade no financiamento, da
inexperiência, falta de concepção para a etapa, vem alimentando a
ocupação desses cargos. É o município que cria a lei desses
cargos de auxiliares, que tem outra carreira, outra formação e
outras funções. Aqui está o primeiro problema: deveríamos
discutir nacionalmente quem é esse profissional, assim como já
discutimos quem é a merendeira, quem é o funcionário da escola,
qual o seu papel, qual é a formação exigida, qual a carreira dele,
qual é o sindicato dele. Essa discussão não está feita. Além
disso, há outro problema, muitos municípios usam esse profissional
como professor. E isso é mais grave ainda. É uma questão muito
complexa: existe a necessidade de outro profissional atuar na
educação infantil? Vamos supor que a resposta seja sim. Se existe,
quem é esse profissional? Qual é a sua função? Em nenhuma
hipótese ele pode substituir o professor.
O
professor da educação infantil tem direito ao piso e a um terço de
hora-atividade?
Sim,
tem direito à carreira docente. Ele entra por concurso de títulos,
é a mesma carreira da Educação Básica. Já o auxiliar, não. Essa
base nem está na base dos trabalhadores da educação, há outros
sindicatos disputando-o. A impressão que tenho é que está sendo
implantada uma disputa de corporações, de identidade, como se a
educação infantil fosse uma disputa de leigos. Não há esse
reconhecimento como há com outras etapas.
As
alterações feitas na LDB em 2013 colocaram em pauta a avaliação
da educação infantil. Como tem sido essa discussão com os
municípios?
Isso
ainda passa por uma disputa. Primeiro: de que avaliação estamos
falando? Vamos avaliar a criança, o programa, o projeto, a política
educacional? Nós da SEB somos contra a criação de um instrumento
de avaliação dessa criança. E a própria LDB diz que a avaliação
é de processo, não da criança. Mas que avaliação é essa? É uma
satisfação que devemos dar, uma avaliação das condições de
oferta. O Inep, com a Sistema de Avaliação da Educação Básica
(Saeb) e em parceria com uma comissão de especialistas e um grupo de
entidades, montou uma matriz de referência, com as dimensões de
oferta, formação profissional, gestão da escola, gestão do
sistema, materialidade, infraestrutura.
Na
Conae 2010 foi indicado o fim das escolas de educação infantil
conveniadas, mas a reivindicação não foi adotada no PNE. Elas
podem prejudicar a qualidade da educação?
A
política que o MEC tem construído é de defesa, estímulo e apoio
da rede pública. Nós entendemos que isso é um grande ganho para o
município. O gestor está vivendo um momento histórico em que ele
pode ter essa identidade, de ter fortalecido a educação infantil
como política pública de gestão direta do poder público do
município. Mas o município é autônomo para tomar outra decisão.
Uma primeira questão é que muita coisa que se chama de
conveniamento não é. Esse modelo implica o repasse de recursos e um
termo assinado. Acontece de um município ceder professor e chamar
isso de conveniamento, sem um documento, prestação de contas,
monitoramento, controle da frequência das crianças. Precisamos
exigir que o conceito de conveniamento seja executado na educação
infantil e o MEC tem um documento para orientar essas parcerias:
Orientações para a oferta da educação infantil por meio de
conveniamento. Por outro lado, a história da educação infantil foi
construída a partir dessas iniciativas. Não devemos negar essa
origem. Essa rede comunitária, filantrópica, teve, historicamente,
um papel muito importante e a que existe historicamente deve ser
respeitada e valorizada. Nós do MEC defendemos que não deveríamos
expandi-la. Belo Horizonte está fazendo um movimento como esse, com
parcerias público-privadas, que me preocupam muito mais que as
conveniadas.
Qual
a diferença das parcerias público-privadas para as escolas
conveniadas?
São
parcerias muito mais complexas, abrangentes e, eu diria,
contraditórias. O convênio não muda a natureza da entidade, que
continua sendo privada, mas faz um atendimento seguindo as exigências
públicas. A parceria público-privada é uma transferência de
exigências: o professor, o material, tudo é deles. Já com o
convênio conseguimos controlar esse atendimento